No Estado desde 1974, o Al-Anon vem ensinando aos familiares do dependente a viver em paz e sem culpa
A dona de casa e mãe de quatro filhos M.L. já enfrentou várias separações e até agressões físicas por parte do marido ao longo de 40 anos de união. O uso do álcool, quase sempre, foi a causa das desavenças do casal. Contudo, somente há cerca de 12 anos, a aposentada - que pediu para ter sua identidade preservada - diz ter compreendido que o alcoolismo do marido é uma doença, uma dependência.
"A forma como eu passei a ver e a lidar com o problema mudou tudo em minha vida, sobretudo o meu relacionamento com o meu marido. Quando a gente muda, o outro também se modifica", reflete.
Mas o novo olhar em relação ao vício em álcool do companheiro de longa data e a nova forma de conduzir a própria vida só vieram após a dona de casa ingressar em um grupo de autoajuda que, no próximo mês, completa 38 anos no Estado do Ceará.
Sem fórmula milagrosa ou mesmo sem a utilização de recursos terapêuticos sofisticados ou onerosos, o Al-Anon trouxe para M.L. não só uma certeza mas, também, um alento: ela não foi a causadora do alcoolismo do marido, não pode controlá-lo e muito menos curá-lo.
"Antes dessa certeza, eu carregava um sentimento de culpa muito grande, que me deixava totalmente atormentada", frisou, explicando que graças à sua participação no Al-Anon agora consegue se enxergar "com os olhos de quem tem direito à própria vida, sem tanta culpa".
O marido de M.L. (ambos estão com 60 anos) enfrentou várias internações em unidades de recuperação, entrou e saiu diversas vezes do Alcoólicos Anônimos (AA). Ex-caminhoneiro, ele também sofreu diversos acidentes ao volante estando sob o efeito do álcool e até chegou a abandonar o trabalho há alguns meses. Por fim, foi obrigado a parar de beber para cuidar da saúde. Porém, mesmo com cirrose hepática, jamais admitiu o vício.
"Muitas confusões, inclusive na presença dos filhos, e muito desamor foram os piores danos que vieram disso tudo", pondera M.L., hoje uma frequentadora assídua das reuniões do Al-Anon, o grupo de familiares e amigos de alcoólicos que segue o programa de 12 Passos do A.A, adaptado para o segmento.
Nas reuniões, os presentes compartilham suas experiências e vivências. Numa espécie de terapia em grupo, os participantes se ajudam mutuamente e buscam forças e esperança na tentativa de resolver seus problemas familiares.
Mudança de atitude
A compreensão de que alcoolismo é uma doença e de que as mudanças de atitudes dos familiares podem colaborar com a recuperação do dependente vêm, via de regra, por meio da reflexão sobre os relatos mais comuns dos familiares.
A frequência da participação de cada membro nas reuniões da entidade é inteiramente livre, assim como a escolha de uma ou outra unidade da Capital ou do Interior. "Quando eu entrei no grupo, eu ia quase todos os dias às reuniões. Atualmente, vou duas vezes por semana, no local da cidade mais perto de onde eu estiver", lembrou M.L., citando já ter frequentado os grupos Novo Caminho (Cidade 2000), Iracema (Igreja Cristo Rei) e 13 de Maio (Igreja de Fátima).
Apesar de a Igreja Católica costumar abrir as suas portas para receber as reuniões, a coordenadora do Serviço de Informação do grupo de autoajuda, Elisabethe Lopes Nobre frisou não haver obrigatoriedade de credo. "O nosso trabalho não é religioso, mas, sim, espiritual", diz.
Anonimato
Outra norma importante aceita entre os integrantes do Al-Anon é o anonimato, acrescenta Elisabethe Lopes Nobre. Ela cita que a entidade nasceu no dia 15 em Nova York, em 1951; no Brasil, em 1966; e no Ceará, em 1974.
Atualmente, o Ceará tem 25 grupos voltados para atender familiares e amigos de dependentes, dos quais 13 funcionam na Capital, dois na Região Metropolitana de Fortaleza (Caucaia e Maracanaú), nove no Interior do Estado (Brejo Santo, Cedro, Icó, Orós, Quixadá, São Gonçalo do Amarante, Sobral, Juazeiro do Norte e Pindoretama).
Vício do pai deixa marcas em vida de educadora
Educadora, casada, dois filhos, amante da leitura e do cinema. Com um jeito manso de falar e uma vida familiar e profissional aparentemente equilibradas, M.L.L., 40 anos, não denota, mas carrega ainda hoje lembranças de uma infância pouco feliz.
"Lá em casa, costumávamos falar que éramos filhos de domingo", diz M.L.L. Primogênita de um casal que vivia em conflito pelo uso exagerado de álcool do pai, M.L.L. crê que ela e o irmão foram concebidos em um dos muitos fins de semana em que o pai se afogava na bebida e, possivelmente, eram raros os momentos de lucidez.
"Ele trabalhava na semana, mas nos fins de semana só bebia", recorda, lembrando que a angústia e os sobressaltos diante do vício do pai eram tão grandes que ao entrar em casa, a pergunta mais comum "ele está queimado?". O cotidiano da família dependia, quase sempre, da resposta, que indicava o grau de embriaguez daquele que deveria ser o chefe do lar.
"As dificuldades eram tantas, que nos dividimos. Meu irmão, mais moço, ficou com minha mãe. Eu fui morar na casa de parentes", cita, frisando que graças ao A.A., o pai largou o vício e a mãe ingressou no Al-Anon.
Ato de falar e ouvir em grupo pode ser terapêutico
O ato de falar ou ser ouvido contribui sobremaneira para amenizar situações de sofrimento intenso vivenciadas por familiares de dependentes do álcool ou outras drogas, explica a coordenadora de Saúde Mental do Município de Fortaleza, a psicóloga Rani Fêlix. "Qualquer fala é terapêutica", observa.
Angústia e revolta são sentimentos comumente demonstrados por familiares de alcoólatras, e a troca de experiências em grupo torna-se uma espécie de terapia coletiva, pois através do relato do outro, há a possibilidade de se vislumbrar saídas para a problemática pessoal. Contudo, Rani Fêlix - que coordena 14 Centros de Atenção Psicossocial (Caps), inclusive as seis unidades que se destinam aos usuários de álcool e outras drogas, conhecidos como Caps-AD - esclarece que a metodologia de autoajuda do Al-Anon é diferenciada do método usado no Município.
Nos Caps-AD, os grupos com, em média, 20 pessoas (em geral o cônjuge, irmão, filho, primo, tio ou tia do dependente) se reúnem para a troca de vivências sob a orientação de um psicólogo. "Dependendo da situação de sofrimento desse familiar, o profissional pode até encaminhá-lo para tratamento psicológico específico", citou, lembrando que o apoio às famílias é uma meta importante na atuação do Caps.
Metodologias
Também Valton Miranda Leitão Júnior, psicólogo psicanalista do CAPs-AD da Secretaria Executiva (SER) II, vê diferença entre as metodologias do Al-Anon e a das unidades de saúde de Fortaleza. Considerou a importância de que o mediador das reuniões em grupo seja alguém preparado e com sensibilidade, "para conduzir bem as falas, os momentos das intervenções". Para ele, a escuta de problema semelhante ao do outro pode ajudar e possibilitar maior clareza dos fatos.
Porém, aponta como um fator, sem dúvidas, positivo nas reuniões, tanto do Caps como do Al-Anon, a contribuição que oferece para romper o isolamento e o estigma na sociedade em relação àqueles que usam álcool, estigma esse que se estende aos familiares.
Alerta, porém, para o risco de que "o ouvir relatos do outro sobre problemática semelhantes às suas possa vir a se tornar algo como machucar, remexer uma antiga ferida".
Já Rani Fêlix diz que dificilmente o usuário do álcool procura atendimento por iniciativa própria. "É fundamental o apoio oferecido às famílias para que sejam refeitos os laços", frisou. As reuniões dos Caps-AD duram duas horas. "As famílias dos dependentes também adoecem, por isso nas reuniões recebem orientações sistêmicas".
Os 12 Passos do A.A. são adaptados para o grupo
Os grupos familiares Al-Anon são uma associação de parentes e amigos de alcoólicos que compartilham sua experiência, força e esperança, a fim de solucionar os problemas comuns. "Nós acreditamos que o alcoolismo é uma doença e uma mudança em nossas atitudes pode ajudar na recuperação do usuário e da harmonia no meio familiar", frisa Elisabethe Lopes Nobre.
Nas reuniões, com constância são lidos os ensinamentos contidos nos 12 Passos para a recuperação no vício usados nos Alcoólicos Anônimos (A.A.), mas adaptados para os familiares de usuário de álcool. Os 12 Passos mostram aos familiares a necessidade de se sentir impotente diante da dependência do outro, acreditar em um poder superior e entregar a própria vida aos cuidados desse poder superior.
DIÁRIO DO NORDESTE
MOZARLY ALMEIDA
REPÓRTER
FOTO: NATINHO RODRIGUES
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