O debate sobre as políticas e investimentos voltados para o
problema das drogas tem ganhado maior atenção no Brasil. Leitos públicos de
internação para dependentes, campanhas preventivas e centros de apoio às
famílias estão entre as principais medidas, adotadas nacionalmente para tentar
minimizar as consequências do uso. Apesar dos avanços, o caminho para a
contenção do vício esbarra em um fator que parece passar despercebido pelo
poder público: o controle do tráfico.
No Brasil, o consumo de cocaína despontou em menos de dez
anos, ultrapassando a média mundial, segundo os dados divulgados, na semana
passada, pelo Conselho Internacional de Controle de Narcóticos, ligado à
Organização das Nações Unidas (ONU). De acordo com o levantamento, em 2005,
0,7% da população brasileira com idade entre 12 e 65 anos fazia uso da droga,
enquanto, em 2011, o índice de usuários passou para 1,75%, frente à média
mundial, que era de 0,4% da população.
No Estado do Ceará, o cenário se mostra ainda mais
preocupante, tomando como base as apreensões de cocaína nos últimos oito anos.
Em 2006, a Polícia Federal recolheu pouco mais de 390 kg da droga no Estado,
enquanto em 2013, o total apreendido foi de 1.143,38 kg, contabilizando um
crescimento de 189% nas apreensões. O aumento considerável mostra que maiores
quantidades da droga estão em circulação no Estado e desvenda outra realidade:
a popularização da cocaína.
Criminalidade
Para o titular da 5ª Vara de Infância e Juventude de
Fortaleza, juiz Manuel Clístenes, a ampliação do acesso à droga é consequência
do barateamento do preço da cocaína a partir da estratégia, utilizada pelos
traficantes, de misturá-la a outras substâncias e fazer render mais.
"Fermento, pó de mármore, talco, uma série de produtos em pó costumam ser
adicionados à mistura, até mesmo anestésico dentário, para causar, no usuário,
a mesma sensação da cocaína pura", explica o juiz.
Associada ao aumento do poder aquisitivo do brasileiro, a
diminuição do preço fez com que a cocaína deixasse de ser a substância ligada
ao vício das classes mais ricas e passasse a atingir, também, as camadas mais
populares da sociedade. A explosão da cocaína, por volta de 2006, coincide com
o aumento drástico dos índices de criminalidade.
"Os usuários não encontram condições financeiras para
manter o vício e vão roubar, e até matar, para conseguir o que querem",
explica o psicólogo especialista em Dependência Química e diretor da casa de
recuperação Instituto Volta Vida (IVV), Inácio Diógenes.
O aumento da criminalidade está relacionado não apenas ao
crescimento dos assaltos e furtos, mas também devido aos assassinatos por conta
de dívidas por drogas e também por aluguel de armas.
No IVV há 15 anos, o psicólogo conta que, na maioria dos
casos que chegam à instituição, a cocaína é o último estágio antes de o usuário
provar o crack. A nova composição da cocaína, que vem misturada a outras
substâncias, traz, ainda outros riscos à saúde dos usuários. "A rebordosa
(sensação de mal estar causada pelo uso de algum entorpecente) é mais forte,
aparece a depressão e aumentam os danos fisiológicos ao organismo, como
complicações respiratórias a longo prazo", detalha.
Controle
As ações repressoras contra o tráfico, para Manuel Clístenes,
não dão conta da real situação. "Falta, no mínimo, investimento no setor
de inteligência das polícias. Como é que qualquer pessoa que chegar a uma praça
pode comprar droga e a Polícia não consegue encontrar os traficantes?",
questiona. Para o magistrado, outra medida que ajudaria a conter a venda da
cocaína, e também de outras drogas, consiste em diferenciar os traficantes, na
forma da lei, a partir do tipo de entorpecente que cada um movimenta.
"Quem vendesse substâncias mais pesadas, como a cocaína
e o crack, teria penas mais rígidas e longas", explica. A mudança, segundo
o juiz, ajudaria a Polícia a se concentrar na apreensão das drogas mais
danosas.
O tratamento oferecido para os dependentes também é visto como
incipiente pelo magistrado. "Só vamos ter condição de falar em melhora
quando tivermos muitos leitos hospitalares tratando a dependência de forma
médica, e não apenas com abstinência", opina.
Ações públicas para tratar o vício
Na esfera estadual, o tratamento para dependentes químicos
tem grande suporte nas comunidades terapêuticas. "Hoje, temos,
contratadas, 556 vagas nesses centros, e o número deve chegar a 800 ainda este
ano", destaca a assessora Especial de Políticas Públicas Sobre Drogas,
Socorro França.
De acordo com a assessoria, o governador do Estado ordenou a
construção de um Centro de Desintoxicação e Reintegração Social, além disso, as
Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) estão sendo estruturadas para também
fazer a desintoxicação dos dependentes. As ações incluem, ainda, a capacitação
de 14 mil agentes de saúde para campanhas preventivas contra as drogas e a
criação de conselhos de políticas sobre drogas em cada município do Estado.
Em Fortaleza, a Prefeitura tem investido, por meio da Coordenadoria
de Políticas sobre Drogas (CPDrogas), no Centro Integrado de Referência sobre
Drogas, no Bairro de Fátima, e na Central de Atendimento 24h, que já acolheram,
juntos, mais de quatro mil familiares e usuários de crack, álcool, cocaína e
outras drogas.
Além dessas iniciativas, a CPDrogas promove ações educativas
e de reinserção social dos dependentes, equipes de abordagem para buscar
pessoas em situação de rua, articulações em comunidades e projetos de pesquisa
para mapear o consumo.
Ingestão de álcool estimula o contato com a droga
Dentre as questões sociais e psicológicas que podem induzir o
uso de drogas, especialmente cocaína, segundo os usuários, o consumo do álcool
é porta de entrada mais comum para o vício. Difundidas especialmente entre os
jovens, com forte apelo midiático, as bebidas alcoólicas têm acesso facilitado.
"O preço é muito baixo, um menor de idade praticamente
não encontra barreiras para comprar, além disso, é uma questão cultural, uma
espécie de afirmação da masculinidade", observa o psicólogo especialista
em Dependência Química, Inácio Diógenes. De acordo com o psicólogo, existem
projetos na Câmara e na Assembleia para proibir a publicidade desses produtos,
mas nenhum avanço foi alcançado. "Não muda nada porque gera muito
dinheiro, os comerciais de cerveja, por exemplo, estão entre os mais caros e
elaborados", pontua.
Experiência
O uso associado de álcool e cocaína se justifica, segundo os
usuários, para balancear os efeitos, já que a droga supostamente corta a
sensação de letargia causada pela bebida. Foi assim com Jorge Damasceno, 54,
dependente químico em recuperação, que vivenciou o consumo abusivo de álcool
durante 35 anos, associado a outras substâncias ilícitas.
"Meu primeiro contato com bebida foi aos 13 anos,
incentivado pelos primos, para vencer a timidez, em uma festa", recorda.
Nascido em uma família de boas condições financeiras, Jorge desfrutava da
liberdade de garoto em festas caras, nas quais circulavam muita bebida e
diversos tipos de drogas.
Aos 23 anos, bebendo em uma roda de amigos, ele provou a
cocaína, depois de já ter experimentado substâncias como a maconha, LSD,
ecstasy e lança-perfume. "Quando eu percebi, o álcool me levou para outro
ambiente: passei a usar cocaína todo dia, perdi tudo e fui morar na rua",
conta. Em 2004, Jorge entrou para reabilitação, e, após recaídas e dificuldades
para superar as abstinências, se tornou voluntário no tratamento para
dependentes químicos. Hoje, quando palestra em escolas ou centros de
recuperação, ele alerta para que outros não tomem o mesmo caminho: "A
droga dá prazer, mas é uma sensação imediata, quando o efeito passa, você não
consegue mais ter família, emprego, nada", relata.
Diário do Nordeste Jéssica Colaço (Repórter)
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