É compreensível que doentes terminais de câncer recorram a
promessas milagrosas de cura, mas é temerário quando o órgão máximo do Poder
Judiciário brasileiro endosse essa busca insana e obrigue o Estado a fornecer
tais "poções mágicas".
O caso em questão é a decisão do ministro Edson Fachin, do
STF (Supremo Tribunal Federal), em liberar o fornecimento da fosfoetanolamina
sintética, substância produzida experimentalmente na USP, mas que nunca passou
por testes clínicos e muito menos têm o aval da agência reguladora (Anvisa).
A decisão foi acatada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo,
que antes havia suspendido liminares que autorizavam a entrega da substância.
Uma das justificativas do desembargador José Renato Nalini é a de que "não
se pode ignorar os relatos de pacientes que apontam melhora no quadro
clínico."
Vamos então liberar tudo o que as pessoas relatam como
substâncias capazes de curar o câncer? O cogumelo do sol? O bicabornato de
sódio? O suco de babosa? A folha de graviola?
Vamos rasgar os manuais de ética em pesquisa, passar por cima
de todas etapas que envolvem o desenvolvimento, a aprovação e a comercialização
de um novo medicamento? Vamos fechar as agências regulatórias?
Do ponto de vista jurídico, o caso tem uma contraposição de
princípios fundamentais, como bem lembrou Nalini: de um lado está o resguardo
da legalidade e da segurança dos remédios, do outro a necessidade de proteção
do direito à saúde.
Em relação à fosfoetanolamina, prevaleceu o direito de o
paciente a ter acesso a uma substância sem respaldo algum da medicina baseada
em evidência. Abriu-se aí um perigoso precedente para o charlatanismo.
Estima-se que a quantia de dinheiro gasto no mundo só com o
charlatanismo oncológico passe de US$ 1 bilhão.
O desejo de cura para o câncer leva muitas pessoas a
procurarem tratamentos não convencionais, a retardarem ou até desistirem dos
tratamentos convencionais.
Foi o que ocorreu com o empresário Steve Jobs, fundador da
Apple, que retardou a cirurgia do câncer de pâncreas para aderir a um
tratamento com ervas, o que teria agravado o seu quadro.
Estimativa da Asco (American Society of Clinical Oncology)
mostra que cerca de 80% dos pacientes com câncer recorrem a tratamentos
alternativos. A sociedade é enfática: não há nenhum indício de que esses
tratamentos contribuam para a regressão ou a cura do câncer.
Além de não contribuir para a melhora, terapias alternativas
podem interferir nos resultados das terapias-padrão. Muitas dessas substâncias
são metabolizadas no fígado e podem alterar a absorção de quimioterápicos, sua
eficácia e a eliminação.
É verdade que há compostos com atividades antitumorais bem
demonstradas em laboratório, mas existe um longo caminho para serem usados na
prática clínica.
São necessários testes laboratoriais e em humanos, com
diferentes tipos de tumores e cenários clínicos controlados. E os resultados
comparados aos de drogas existentes. Caso sejam mais eficientes, o laboratório
pede o registro às agências reguladoras. Nada disso foi feito no caso da
fosfoetanolamina.
O oncologista Drauzio Varella costuma dizer: "Se um dia
você ouvir que foi encontrada a cura do câncer, não leve a sério". O
problema é quando a Justiça o leva.
Fonte: Folha de S. Paulo
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