Em março de 2015 entrou em vigor a Lei do Feminicídio, que
alterou o código penal para incluir o assassinato de mulheres praticado por
razões da condição de sexo feminino como crime hediondo. Mas apesar do maior
rigor, o Ceará não conseguiu frear as mortes de mulheres, e, após pouco mais de
um ano da nova lei, o estado já registrou 302 assassinatos. Na maioria dos
casos são vidas interrompidas violentamente por motivos banais como ciúme,
vingança ou fim de um relacionamento.
A Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) estima que 65% das
mulheres assassinadas no Ceará sejam vítimas de crimes passionais. Ou seja, a
cada 10 mulheres mortas, seis são vítimas de feminicídio, cometidos por
namorados, maridos ou ex-companheiros. Os demais assassinatos ocorrem por
envolvimento com a criminalidade ou outros motivos, que se configuram como
homicídio.
Os feminicídios são mortes violentas e por causas banais, que
poderiam ser evitadas. Um dos casos presentes nessa estatística é o da técnica
de enfermagem Maria Elisângela Gomes Lemos, que foi assassinada pelo
companheiro por ciúme. O corpo da vítima foi encontrado somente três dias após
o assassinado, dentro de um freezer na residência onde o casal morava, em
Fortaleza.
O suspeito, identificado como Francisco Roberto Oliveira, foi
mais além, e também matou o vice-prefeito do município de Choró, apontado por
ele como suposto amante da companheira. Após os crimes, Roberto atirou na
própria cabeça e morreu no hospital.
Segundo a titular da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM),
delegada Rena Gomes, histórias de crimes
motivados pela relação perigosa entre amor e ódio têm se tornado cada vez mais
frequente no Ceará. Dentre as causas de tragédias familiares estão o ciúme, as
brigas conjugais ou a não aceitação do fim de um relacionamento.
"O que se leva aos crimes de feminicídio é a questão da
violência doméstica, atrelada, muitas vezes, ao fim de um relacionamento. O
homem não aceita ser contrariado pelo fim de um relacionamento, pois ele
entende que a mulher é posse dele e que pode fazer o que bem entender. Essa
motivação passional pode levar ao cometimento dos crimes", relatou.
Marcas da violência
Em casos de feminicídio é possível observar nos corpos das
vítimas as marcas da violência empregada pelo criminoso. A delegada Rena diz
que, nestas situações, o homem tenta se impôr perante à mulher, como se
precisasse demonstrar sua força e suposta superioridade.
"É possível dizer que trata-se de um feminicídio só em
olhar as marcas nos corpos das mulheres em uma cena de crime. Você nota a raiva
do agressor e a vontade de não apenas matar, mas de exterminar o corpo da
vítima. O agressor dificilmente mata com apenas uma facada, por exemplo. Ele
mata com 15, mata com 20. É como se ele tivesse certeza que ele vai destruir
completamente aquele objeto que ele entende ser dele", explicou.
Uma outra característica do feminicídio é a vontade de o
agressor tentar se eximir da culpa, tendo o suicídio como uma das saídas
escolhidas erroneamente no momento de desespero. Em fevereiro deste ano, por
exemplo, o agente de saúde Francisco Wallyson Sousa, 29, matou a mulher a
facadas e depois cravou a arma do crime no peito, morrendo ao lado da
companheira. Segundo a polícia, o casa havia tido uma discussão e o homem
acabou terminando a briga de forma trágica.
Rena diz que nestes casos o homem se arrepende não por ter
matado uma pessoa, mas por saber que responderá criminalmente a um crime grave.
A pena para crimes de feminicídio, conforme o código penal brasileiro, é de 12
a 30 anos de reclusão.
"O agressor tenta se eximir da responsabilidade
criminal, atentando contra a própria vida. Não é que ele se arrepende do ato de
matar a companheira. Ele apenas quer se eximir da responsabilidade legal,
porque o feminicídio é um crime hediondo e inafiançável. Como o agressor não
quer enfrentar a punição, ele acaba tirando a própria vida, mas ele não deixa
de matar", explicou a investigadora.
Cultura machista
A titular da DDM aponta que a violência contra a mulher se
tornou um problema cultural e que dificilmente será combatido somente com leis
penais.
"Mesmo com o rigor da lei, nós ainda temos um grande
problema que é a cultura. O número de agressores presos é crescente, mas
infelizmente a cultura da violência doméstica, a cultura machista, a cultura da
dominação do sexo masculino sobre o sexo feminino ainda não mudou. E isso é
complicado porque se você não consegue mudar a cultura, não é possível mudar a
consequência daquele delito", relatou a delegada.
O pensamento da delegada Rena Gomes também é compartilhado
pela doutora em sociologia e coordenadora do Observatório da Violência contra a
Mulher (Observem), Maria Helena Frota. Segundo a professora, as leis contribuem
com o caráter fiscalizador dos atos ilícitos, mas a redução da violência contra
a mulher só será observada no momento em que o homem deixar de considerar a
mulher como sua propriedade.
Os assassinatos contra mulheres não são casos isolados e
seguem históricos semelhantes. Muitas vezes os homens se sentem contrariados
por alguma atitude e com o tempo contribui para que a violência doméstica
aumente, chegando até a morte", apontou a especialista.
Maria Helena Frota afirma que os crimes passionais são os
delitos de natureza mais grave, por ter a capacidade de desestabilizar famílias
inteiras. A mulher, conforme a especialista, é o centro familiar e a falta
dessa figura proporciona perdas estruturais e afetivas no seio familiar.
"Crimes passionais, cometidos com a justificativa do
amor, mechem com toda a família. As mulheres tomam o papel de organização da
família, se configurando como figura pacificadora dos filhos, irmãos, pais.
Então a perda desse elemento central desestrutura a organização familiar. A
morte da mulher é um prejuízo grande para quem vai permanecer com aquela falta
por muito tempo", ressaltou a professora.
Vidas marcadas
Família inteira abalada por um ato criminoso. Esta é a
realidade vivida por familiares de Adriana Moura Pessoa Carvalho Moraes, 39, e
de sua filha, a bebê Jade Pessoa Carvalho, de oito meses, que foram
assassinadas pelo marido e pai das vítimas, Marcelo Barberena, que está preso.
O crime, ocorrido em agosto de 2015, no município de
Paracuru, chamou atenção pela crueldade. Investigações da Divisão de Homicídios
e Proteção à Pessoa (DHPP) concluíram que o homem matou a mulher e, para
simular que havia ocorrido um assalto, atirou também na filha. Ambas, sem
nenhuma chance de defesa.
Marcelo Barberena foi preso horas após o crime, e indiciado
na Justiça por duplo homicídio triplamente qualificado: além de feminicídio,
motivo fútil e sem chance de defesa às vítimas.
Passados nove meses, a família de Adriana e Jade ainda sente
a dor irreparável das perdas. A irmã de Adriana, Ana Paula Moura, diz que não
consegue esquecer o que aconteceu. O sentimento que fica é a saudade.
"A gente sofre muito, mesmo após esses nove meses. Não
conseguimos absolver o que aconteceu e muito menos aceitar. É um sentimento de
profunda mágoa, tristeza, dor e saudade. A saudade é maior. Buscamos a Deus
para tentar não sofrer ainda mais do que já sofremos, mas a dor ainda é muito
grande", relatou Ana Paula, ainda sob forte emoção.
Ana Paula diz que a outra filha de Adriana, que tem hoje oito
anos, está sendo cuidada pelos avós. Conforme a tia da menina (identidade
preservada), ela sente muita falta da mãe, mas já entende o que aconteceu
naquele dia.
"Meus pais [avós da menina] estão com a guarda dela após
a morte da Adriana. Ela sabe o que aconteceu e está se recuperando aos poucos,
com toda assistência da família e de psicólogos. Estamos dando total apoio,
porque queremos que ela tenha uma infância e adolescência feliz, apesar de tudo
que aconteceu", disse.
Ana Paula finalizou a entrevista dizendo que agora só espera
que a Justiça seja feita. Agora, a família tenta tirar forças na fé para seguir
adiante.
"A família inteira sente muita falta das duas. Ainda
existe um sentimento de prestação de contas pendente pelo que aconteceu. Essa
história ainda não teve um ponto final. Esperamos que a justiça seja feita, de
forma célere e firme", finalizou.
Denúncias podem evitar crimes
A delegada Rena Gomes, titular da DMM, afirma que a violência
doméstica precisa ser denunciada para evitar algo mais trágico, como lesões
corporais e mortes.
A DDM de Fortaleza chega a receber, em média, 40 pedidos de
medidas protetivas a mulheres que sofrem agressão ou ameaças de companheiros ou
ex-companheiros. A medida garante, por força judicial, que o agressor não se
aproxime em menos de 100 metros da pessoa que se sente ameaçada.
Apesar dos números, Rena diz que muitas mulheres ainda deixam
de denunciar as agressões sofridas, seja por medo de retaliação ou pela
sensação de dependência do companheiro.
"As vítimas são pressionadas a não denunciar. Fatores
econômicos e emocionais também influem para que a mulher esconda a agressão e
não denuncie o companheiro. Mas o correto é sempre procurar algum órgão, seja
rede de enfrentamento à violência ou delegacia, e fazer a denúncia",
indica a delegada.
Denúncias de agressões ou violência contra a mulher podem ser
realizadas nos Centros Estadual e Municipal de Referência e Apoio à Mulher,
Delegacias de Defesa da Mulher ou através do telefone 180, da Rede de
Enfrentamento à Violência contra a Mulher.
Mais informações sobre como realizar denúncias e apoio em
caso de agressões podem ser adquiridas por meio do site do Observatório da
Violência contra a Mulher (Observem).
G1
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