Prestes a completar 90 anos, Seu Dantas foi proibido pelos
filhos de escalar a estrutura que havia criado décadas atrás para pendurar os
quatro alto-falantes - orientados para cada um dos pontos cardeais - que
transmitem seu programa matinal, A Voz da Liberdade. Quem passa diante de sua
casa de paredes amarelas e janelas escuras não percebe os 13 metros
improvisados de escadas de ferro que se levantam acima do teto, ancorados pela
caixa d’água que abastece a família.
“Eu brigava, mas quando dava um problema no aparelho ele
continuava subindo, mesmo com labirintite. Um amigo fez um cinto de segurança,
mas ele não quis usar. Nunca sofreu uma queda, dizia que não precisava de ajuda
porque Jesus protegia a subida”, conta Regina, filha de Seu Dantas e
companheira do pai na locução do programa. A Voz da Liberdade é transmitido
todos os dias, a partir das seis da manhã, e tem duração média de 30 minutos.
Seu Dantas intercala os anúncios e promoções das lojas da
Cidade - três reais para três chamadas - com grandes sucessos de Nélson
Gonçalves e Orlando Silva, desejos de feliz aniversário e avisos de
falecimento. “Até a Macavi já foi nossa cliente fixa”, lembra Regina. Na lista
de fregueses antigos e contratos regulares, a prefeitura de Orós ocupava lugar
de destaque até o fim da última gestão. “A crise tá prejudicando, vamos
perdendo os parceiros”, lamenta.
Seu José Ribeiro Dantas chegou a Orós no final dos anos 1960,
depois de percorrer parte do Ceará e Paraíba com ocupações diversas: foi
jardineiro de colégio, palhaço de circo e locutor de quermesse. Mas foi nas
feiras paroquiais que descobriu o amor pela locução, e logo estava juntando
trocados para um curso de radiotécnico e eletrônica. “Quando cheguei aqui, vi
que podia trabalhar consertando aquelas peças de radiadora, e aí o negócio
entrou em mim”, conta.
A ideia para A Voz da Liberdade surgiu, segundo ele, depois
que presenciou o drama de “duas mocinhas que foram demitidas porque chegaram
atrasadas no trabalho”. Para evitar que o episódio se repetisse, decidiu criar
seu despertador musical. “Eu achava que faltava alguém pra acordar aquilo que
tavaparado, acomodado. E todo mundo gostou, até o delegado da cidade entrou no
embalo”, garante. Agora, não falta quem comece o dia a partir dos anúncios que
Seu Dantas faz em sua estação.
Em quase 50 anos dedicados à locução, guardou na memória
alguns poucos atos de resistência: não faz muito tempo, um grupo se juntou para
colocar abaixo a criação de Seu Dantas, incomodado com o barulho matinal. Por
sorte, a reação popular foi imediata, e em poucos dias circulava pela cidade um
documento com mais de mil assinaturas em defesa do programa. “Eu já tô tão
acostumada que nem me incomoda. O som é virado pra minha casa, se o telefone
tocar eu tenho que levar pro banheiro, mas ele é muito querido na comunidade”,
defende Dona Cleide, vizinha do locutor.
Com a progressiva surdez do pai, Regina vem, cada vez mais,
assumindo as rédeas do programa. Mas Seu Dantas não pensa em abrir mão da
atividade, e faz questão de se levantar cedo para produzir o programa do dia.
Em uma dessas vezes, enrolou-se nos discos de música e colocou um forró para
tocar enquanto lia o obituário do falecido. A família correu para reparar o
dano, engatou canção de igreja, desculpou-se pelo equívoco. Do lado de fora,
ninguém se importou. Em Orós, Seu Dantas é figura.
UM FILME PARA SEU DANTAS
Filho de Orós e em Fortaleza há 12 anos, o ator e produtor
cultural Edson Cândido se prepara para transformar em documentário a história
de Seu Dantas. Partindo de uma investigação sobre comunicação alternativa e
empreendedorismo comunitário, Edson começou a entrevistar personagens que
faziam parte da vida do locutor e a levantar sua trajetória. “Um tempo atrás,
fizeram uma pesquisa pra ver onde estavam as grandes audiências da cidade, e aí
detectaram que, entre as 6 e 7 horas, ninguém escuta rádio, todo mudo mundo só
ouve A Voz da Liberdade”, comenta.
Sugestão do leitor
Esta matéria foi sugerida pelo leitor Junior Alves
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para: 3254 1010
O POVO
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