Um ano se passou desde a maior sequência de rebeliões da
história do Sistema Penitenciário do Ceará. De lá para cá um saldo negativo
permanece: as estruturas das unidades prisionais ainda estão danificadas; há
processos judiciais contra agentes, apontados como responsáveis por incitar o
caos; muitos detentos ainda estão foragidos; e quem presenciou os momentos de
aflição procura formas de conviver com os traumas.
Os 365 dias não foram suficientes para que a Secretaria da
Justiça e Cidadania do Ceará (Sejus) restaurasse por completo os equipamentos
quebrados. Também não foi da vontade dos presos retornar às grades, nem
permitir a reconstrução de paredes e pisos destruídos, que têm facilitado as
fugas recorrentes.
De 20 a 23 de maio de 2016 morreram 18 presos nas Casas de
Privação Provisória de Liberdade (CPPLs), localizadas no Complexo Penitenciário
de Itaitinga. A guerra interna teria começado quando se espalhou a notícia do
cancelamento das visitas, consequência da greve dos agentes penitenciários.
O presidente do Sindicato dos Agentes e Servidores do Sistema
Penitenciário do Ceará (Sindasp-CE), Valdemiro Barbosa, que participou do
movimento grevista, conta que a destruição já havia começado antes da suspensão
de visitas. Para ele, o real motivo da fúria dos detentos foi o anúncio do
bloqueio do sinal de celulares.
"Quando o Governo encaminhou a mensagem que bloquearia o
celular, eles quebraram as CPPLs. O que houve naquela época foi fruto de uma
gestão incompetente e inábil na Sejus", disse Barbosa.
Urgência nas mudanças
Para o presidente do Conselho Penitenciário (Copen), advogado
Cláudio Justa, os episódios de maio do ano passado estavam sendo "gestacionados".
Isso, porque, a fragilidade da infraestrutura do Sistema Penitenciário em todo
o País é uma "bomba relógio prestes a eclodir".
"O Sistema não mudou substancialmente. Houve uma
repartição de espaços para evitar os conflitos, mas a estrutura continua
basicamente a mesma: superlotada, com número de presos provisórios muito acima
do desejado e baixo efetivo de agentes. Com a destruição das unidades, os
detentos ficaram nas ruas e isso não foi retomado totalmente. É o que vemos,
por exemplo, na CPPL III", diz Justa.
A informação foi confirmada por uma fonte oficial da Pasta,
que já esteve na direção de alguns dos principais presídios do Estado, e
preferiu não ser identificada. "Hoje, os agentes que trabalham da CPPL III
vivem sob pressão. Lá é a prisão mais crítica. Pedem para serem transferidos,
porque não suportam mais saber que vai acontecer uma rebelião a qualquer
momento". A fonte lembra que alguns internos fugiram por temer serem
mortos lá dentro, durante e depois das rebeliões.
Outra fonte ligada ao Sistema Penitenciário disse que a Sejus
esta permitindo uma divisão de detentos por facção. "Eles querem evitar os
confrontos do jeito mais fácil, que é separando por facção para não ter briga.
O problema é que esses presos já foram tão atendidos que não aceitam ser
contrariados. Eles mandam no Sistema".
Segundo o ex-diretor, "nem um presídio de segurança
máxima adiantaria para resolver os problemas de segurança no Ceará". Para
o servidor, o Governo sabe que as facções mandam dentro e fora das
penitenciárias.
"A cada acordo, como o feito em abril para cessar os
ataques aos ônibus, é visto que os dirigentes se curvam e retrocedem quanto a
sua força para com os criminosos", considerou.
Sejus quer Sistema mais humanizado
"Nosso maior objetivo, hoje em dia, é tornar o Sistema
Penitenciário mais humanizado e temos trabalhado muito para isso", afirmou
a titular da Secretaria de Justiça e Cidadania (Sejus), Socorro França. A
secretária assumiu que a Pasta tem grandes desafios para enfrentar e disse que
muitos esforços estão sendo feitos para que as tensões diminuam nas
penitenciárias.
"Estamos fazendo o que determina a Lei de Execuções
Penais (LEP) e tentando oferecer assistência médica e espiritual, dando aos
internos acesso à educação. Existe uma superlotação, mas estamos tentando
resolver isso também. Vamos entregar duas novas unidades neste ano e mais duas
no próximo".
A respeito da atuação incisiva de facções, nos últimos
tempos, a secretária afirmou que estão sendo feitas movimentações dentro das
penitenciárias para evitar confrontos e mortes.
Socorro França nega que alguma penitenciária do Estado esteja
sob controle de facções criminosas. "Não existe isso. A Sejus tem o
controle e as movimentações dos internos são feitas para onde nós
determinamos", declarou.
Dez agentes foram responsabilizados
A greve dos agentes penitenciários foi considerada pelo
Ministério Público do Estado (MPCE) o estopim para as rebeliões de maio de
2016. A Instituição fez a denúncia criminal e ajuizou uma ação Civil Pública
contra dez profissionais da categoria, requerendo, entre outras medidas, a
demissão de todos eles e o pagamento do prejuízo causado ao Estado, durante a
confusão.
"Os agentes entraram em conluio para praticarem atos que
culminaram na morte de 18 pessoas e na depredação de equipamentos públicos
calculada em R$ 10 milhões. Não foram denunciados pelos homicídios porque não
houve ação direta deles, nem sequer havia prova de mando. Mas eles ensejaram a
prática dessas mortes. Propositadamente, marcaram a greve para o sábado, que
era dia da visita; espalharam para os detentos que não haveria visita; abriram
as celas e permitiram que os presos circulassem livremente, o que ocasionou os
confrontos entre grupos rivais; por fim, impediram a PM de entrar para garantir
o dia de visitas", afirmou o promotor de Justiça Ricardo Rocha, da
Promotoria de Defesa do Patrimônio Público.
Anarquia
Ricardo Rocha disse que as punições criminais pleiteadas na
Justiça, mesmo somadas, são baixas e prescreverão rápido. "Dificilmente
serão presos. A título de se viver em uma democracia, muita gente está
transformando isso em anarquia, o que é muito preocupante. O que esses agentes
fizeram é exemplo disso. A Constituição prevê o direito de greve e estabelece
que a pessoa pode não ir trabalhar, mas o que se fez não foi isso. Foi um plano
criminoso para impedir outros profissionais de trabalharem. Causaram tragédias
para chamar atenção, como forma de colocar o Governo refém. Usaram o momento
para que demandas da categoria fossem atendidas. O que a Constituição prevê não
é nada disso", afirmou.
O promotor afirma que o Sistema Penitenciário tem problemas
graves, que precisam ser combatidos. "No Brasil não existe penitenciária,
o que existe é depósito de gente. Nos presídios há uma degradação humana total,
inadmissível e revoltante. É preciso que as entidades, e nelas incluo o
Ministério Público, tomem medidas para que o Governo, ao menos, comece a
trabalhar nisso. A responsabilidade do MPCE é muito grande nesse aspecto e ele
deve agir através da Procuradoria Geral de Justiça (PGJ) para fazer alguma coisa".
Ricardo Rocha ressaltou, também, a atuação das facções no
Ceará. "Estamos sentindo agora o fenômeno da mudança ou da chegada desses
grupos organizados, que antes só existiam no Sul e Sudeste do País. Não é
folclore. Esses grupos estão aqui e estão atuando fortemente. Não podemos nos
iludir achando que isso não existe. O que está acontecendo no Ceará é
grave".
Fonte: Diário do Nordeste
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