Em Boa Viagem, água só a cada 30 dias
Talvez seja o resto de água do Vieirão, o açude João Vieira
Filho. Sete poços escavados no porão do açude, numa fileira ao longo de dois
quilômetros. Porão é o fundo de um reservatório. A água salobra extraída deles
é bombeada para um cacimbão de dez metros de altura por três de diâmetro. De
lá, novo bombeamento lançado para uma caixa de 1 milhão de litros, dentro da
estação de tratamento. Depois, distribuída para a cidade. Ainda chega meio
salgada para o consumo humano. Em Boa Viagem (a 226 km de Fortaleza), as casas
que tenham alguma pressão nas torneiras atualmente recebem água apenas a cada
30 dias. Por pouco mais de uma hora, quando muito. Para beber, só comprada.
Boa Viagem é uma das cidades cearenses onde, mesmo num ano
melhor de chuvas, às vésperas do dia de São José, a crise hídrica não se
dissipou. Na primeira semana de março, O POVO percorreu quase 1.400 km entre as
regiões do Sertão Central e Jaguaribana, onde o céu encoberto dá mais suadouro
que toró e o aporte nos reservatórios ainda é insignificante. Foi logo após um
fevereiro mais chuvoso que a média dos últimos seis anos. A seca ainda é grave,
porém há roçados já brotando ou em colheita e rios importantes com água
corrente em boa altura. Fomos ver onde está seco, onde há algum aporte e o que
se desenha como alguma esperança no que o sertanejo chama de inverno.
No caso do Vieirão, podem ser mesmo suas últimas águas, se a
chuva tardar mais. Primeira semana de março, o sétimo poço estava sendo aberto.
Uma retroescavadeira e os operários buscando o melhor veio do rio subterrâneo.
“Esse último poço é nossa esperança. Com esse pouquinho vai dar certo, até Deus
mandar mais”, reza João Alves de Araújo, o “Del”, 60 anos, debaixo de um sol
sem piedade. Trabalhando há 32 no Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE), a
autarquia responsável pelo fornecimento local, Del admite nunca ter visto Boa
Viagem tão necessitada de água. Outro açude que margeia o município, o Capitão
Mor, em Pedra Branca, também está na relação dos que secaram no
Estado.
Até deu água no novo poço dentro do Vieirão, mas deve durar
pouco. “A água está acabando porque não chove”. A quadra chuvosa atual, de
fevereiro a maio, tem melhores prognósticos que a dos seis anos anteriores de
seca. Fevereiro teve chuvas 30% acima da média no Ceará, mas em Boa Viagem
deu-se o contrário. Choveu 47,3% menos. A maior precipitação do mês passado,
dia 8, chegou a 54 milímetros.
A reserva do Vieirão secou na pedra. É comum plantarem dentro
de açudes secos, para aproveitar o último chão molhado, mas lá nem isso. Não
tem roçados espalhados. Onde deveriam estar 19 metros de água represada, se
cheio estivesse, a paisagem voltou a ser um vale. Verde por dentro, restos de
árvores que antes eram mergulhadas, areia frouxa, mato, réguas de medição do
nível d’água à mostra.
O açude completa 30 anos em 2018. José Luis Oliveira trabalha
como vigilante e anotador do reservatório. Diz que não tem feito registro além
do zero “há uns três anos ou mais” para o controle hidrológico. A rotina dele é
ao lado de um sangradouro que só funcionou uma vez na última década, em 2011,
quando o Vieirão se encheu (21 milhões de m³). Depois, minguou-se.
Os poços são a alternativa para a sede municipal desde 2016.
No relatório “Situação de Abastecimento das Sedes Municipais”, atualizado até
15 de março, os órgãos de gestão dos recursos hídricos do Ceará apontam que Boa
Viagem é uma das 13 cidades em colapso atual ou com água só até 31 de março de
2018. “Talvez nem chegue a isso, até o final deste mês. Estamos à beira do
caos”, admite o gerente administrativo do SAAE, Fábio Camurça. “O limite já
acabou. A situação é calamitosa”, reforça o diretor da autarquia, Odécio
Soares.
A cidade tem 54 mil habitantes (Censo de 2016). São 14.135
ligações de água entre zona urbana e rural, informa a SAAE. Porém, a torneira
seca tem criado inadimplência à autarquia muito além do suportável. Das 6.795
ligações ainda ativas no município, 3.632 sem pagar a conta (53,4%, até o
último dia 7). A conta chegando, a água não, os moradores foram pedindo
desligamento do serviço. O SAAE, segundo Camurça, dá prejuízo ao cofre municipal
desde outubro de 2015.
Ele descreve a cronologia da crise hídrica de Boa Viagem: “O
racionamento começou em maio de 2013, em dias alternados. Foi melhorando,
piorando. Em 2016, passou a ser uma vez por semana. Houve melhora em outubro
daquele ano, voltou para dia sim, dia não. Reativou para uma vez por semana no
começo de 2017. Mudou para cada 15 dias até novembro de 2017. Passou a ser 20,
depois 25, agora água é a cada 30 dias”. Poços que deveriam ter água por 60
dias já não conseguem bancar mais que 20 dias.
O POVO
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