"Tristeza e revolta. Eu tenho todas as provas e cumpri
direitinho em contribuir". O sentimento da agricultora Maria das Graças,
55, que teve a aposentadoria rural negada após entrar com o pedido em 26 de
novembro do ano passado, não é exclusivo. Garantia de renda a milhares de
cearenses e fomento às economias de pequenos municípios, o benefício vem
sofrendo baixas. Representativo disso é o aumento de 13,6% no número de pedidos
negados, entre 2018 e 2019, passando de 15.042 para 17.414 negativas.
As análises demonstram que a tendência deve se manter. Até
março deste ano, 3.886 pessoas já tiveram seus pedidos negados pelo Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS). "Juntei as provas, fiz salário
maternidade, recebi o Brasil sem Miséria, fiz o Agroamigo, comprei botas,
enxada para trabalhar na roça. Há 21 anos que guardo todos os recibos",
lista a agricultora, que mora com o esposo, o também agricultor Maurício de
Sousa, 45, e a filha Milena Rodrigues, única da casa com renda fixa, de meio
salário mínimo do Jovem Aprendiz.
Os documentos citados por Maria das Graças são necessários
para comprovar a atividade no campo. "Vivo da agricultura desde 1998. Nem
sempre tem trabalho. Eu tinha o Bolsa Família, mas foi reduzido quase pela metade.
O dinheiro da minha filha dá mais para as passagens, já que ela trabalha na
cidade e a gente mora no sítio", conta a mãe. A família reside no distrito
Baixio das Palmeiras, no Crato.
Mudança no Sistema
Além do aumento no número de pedidos negados, o total de
aposentadorias rurais concedidas caiu 17,8%, média superior à observada no País
- de 10%. Entre 2018 e 2019, o Ceará passou de 23.860 pedidos concedidos para
19.599, número que representa 45,4% do total de benefícios do INSS (39.633) no
Estado. O especialista em direito previdenciário, Thiago Albuquerque, avalia
que o aumento de pedidos negados e a redução dos concedidos podem ser
consequências das "alterações na legislação que modificaram o procedimento
de declaração de atividade rural e a análise virtual do processo".
"O Governo Federal adotou medidas que, em tese, tornaram
o requerimento do benefício mais fácil, no entanto, toda mudança leva um tempo
de adaptação e a população ainda não estava preparada para o modelo proposto de
autodeclaração", avalia Thiago Albuquerque.
Entre as alterações legais adotadas, estão as previstas pela
Medida Provisória 871/19, convertida na Lei 13.846/19, que visa combater
fraudes. A medida instituiu, por exemplo, um bônus (Benefícios com Indícios de
Irregularidade do Monitoramento Operacional de Benefícios) no valor de R$ 57,50
a servidores que analisarem pedidos com possíveis irregularidades. A medida,
somada à "estipulação de metas mínimas e aposentadoria de milhares de
servidores sem a devida reposição, levanta o questionamento sobre a precisão de
tais análises", avalia Thiago.
O INSS informou que o bônus vale para "processos
trabalhados fora da jornada comum do servidor, que visa diminuir a espera por
conclusão de processos e segue o mesmo rigor de apuração dos demais
requerimentos".
Sindicatos
As mudanças nos critérios têm impacto na logística de quem
está na ponta dos processos. O diretor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
Iguatu, Evanilson Saraiva, analisa que a política tem sido mais rígida. "O
INSS está fazendo um filtro rigoroso, exigindo mais comprovação de
documentação", explicou. Thiago Albuquerque acrescenta que a legislação
está estreitando o acesso ao benefício: "Houve alterações justamente em
pontos pelos quais o Poder Judiciário revertia os indeferimentos do INSS".
Com isso, há um acúmulo nos pedidos negados. Em Iguatu, dos
cerca de 40 pedidos de aposentadoria rural emitidos por mês pelo Sindicato,
oito são negados. No Crato, a média de oito negativas se mantém. Por mês, cerca
de 35 dos 57 pedidos enviados pelo Sindicato dos Trabalhadores/as Rurais do
Município são de aposentadorias rurais. "Todos os trabalhos, exceto a
perícia médica, são feitos aqui", ressalta Celiane Bispo, presidenta do
sindicato.
O modelo adotado é decorrente do enxugamento da máquina
pública, por parte do Governo Federal. Em 2019, o então presidente do INSS,
Renato Vieira, anunciou que seria fechada metade das agências do órgão.
Questionado sobre quantas unidades seriam fechadas no Ceará, o INSS respondeu,
em nota, que "este plano não foi iniciado ainda no país". O Ceará
segue com 92 agências, "sendo três apenas para Atendimento de Demandas
Judiciais". O órgão não informou quantas, quais e quando serão fechadas.
Atividade rural
Um dos gargalos é a apresentação da documentação que comprova
a atividade rural e o tempo de serviço no campo, o que antes poderia ser feito
pelos sindicatos rurais. "Agora, com a lei 13.846/19, não se exige mais a
declaração, mas uma autodeclaração (do agricultor), o que parece uma tentativa
de isolar a força representativa dos sindicatos", avalia Thiago. É feito o
primeiro pedido e, se negado, é possível recurso. Caso a negativa permaneça, o
pedido passa à Justiça Estadual ou Federal.
Residente na zona rural de Iguatu, no Centro-Sul, o
agricultor Manoel Caldas tenta, há mais de um ano, obter o benefício. Por meio
de assistência jurídica do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, ele deu entrada
no pedido. "Foi negado uma vez e estou aguardando nova resposta do
INSS", disse. "Se for negado de novo, o jeito será recorrer na
Justiça". A alegação, segundo Manoel, é que o tempo exigido de trabalho no
campo não é suficiente. A situação se assemelha à da agricultora Maria das
Graças, no Crato, que entrou com processo e aguarda audiência.
Economia
João Mário de França, diretor geral do Instituto de Pesquisa
e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece), ressalta que os benefícios do INSS têm
impacto considerável nas economias dos municípios, principalmente dos pequenos,
que têm menos de 50 mil habitantes. "Quase toda a aposentadoria rural
recebida se transforma em consumo, dinamizando a economia através do comércio
local de bens e serviços", avalia.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua
(PNAD) 2018 mostram que quase 28% da renda individual na zona rural do Ceará
vinham das aposentadorias. "O problema da redução na concessão dos
benefícios é que pode aumentar a pobreza e incentivar o êxodo para as
cidades", ressalta o diretor do Ipece. "Considerando os benefícios
emitidos no Ceará em dezembro de 2019, verifica-se que 93% dos municípios
apresentavam Benefícios Previdenciários Rurais superiores aos Urbanos",
finaliza.
Para o presidente da Associação dos Prefeitos do Estado do
Ceará (Aprece), Nilson Diniz, os impactos se darão a longo prazo. "Podemos
perder dos aposentados esse ano e associado a isso temos a perda do número de
anos recebidos", avalia, ressaltando que o recurso impacta no Produto
Interno Bruto (PIB) das pequenas cidades. "No Ceará o PIB per capta já é
baixo e nesses municípios menores é menor ainda. Fica, geralmente, pela metade.
Se a gente vai ter um número menor de agricultores recebendo e com menos tempo,
vamos diminuir o volume do PIB". Segundo ele, mais de 100 municípios se
enquadram nesse modelo.
O agricultor Antônio Costa, em Iguatu, é exemplo da
importância do benefício. Ele conseguiu se aposentar ao completar 60 anos, em
novembro do ano passado.
"Chegou na hora certa porque a gente vai cansando com o
sol do sertão", comemora Antônio
.
"Nessa agricultura que a gente pratica quase não dá mais
nada, não fica renda porque, na maioria dos anos, a gente perde o
plantio", disse. Juntamente com a esposa, também aposentada, a família
consegue, por mês, a renda mínima de dois salários mínimos para sobreviver.
Fonte: Diário do Nordeste
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