Uma ramificação de Fortaleza para os municípios do interior. Essa é a visualização básica da pandemia do novo coronavírus no Ceará, que se espalhou pela Região Metropolitana da Capital; nas últimas semanas, ganhou força na Região Norte e, agora, também avança no Centro-Sul do Estado. Especialistas em Saúde Pública e autoridades apontam que a interiorização da doença era um fenômeno epidemiológico esperado e teve na mobilidade rodoviária um fator importante de disseminação.
Dados da plataforma IntegraSUS confirmam a expansão da doença pelo Estado. Em 22 de março, 79,6% dos casos se concentravam na Capital. Ao longo da pandemia, essa porcentagem diminuiu. Em 22 de abril, eram 69,5%; um mês depois, 42,7%. Nesta segunda-feira (22), o índice caiu para 35%, ou seja, apenas um em cada três casos confirmados no Ceará foi registrado em Fortaleza.
Segundo o último boletim epidemiológico da Secretaria Estadual da Saúde (Sesa), todas as Áreas Descentralizadas de Saúde (ADS) apresentaram incremento na incidência de casos confirmados na última semana, com destaque para as regiões de Iguatu (78%), Juazeiro do Norte (61,8%), Crateús (52,5%) e Crato (43,6%). O painel de monitoramento do Comitê Científico do Consórcio Nordeste expõe que, no Ceará, as cidades com aumento de casos nos últimos dias foram Iguatu, Juazeiro do Norte, Barroquinha, Baturité e Quixadá.
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A Sesa aponta ainda que o número de reprodução da doença - cálculo da média de pessoas infectadas a partir de um caso - está abaixo de 1,0 no Ceará, mas no Litoral Leste e Jaguaribe, Sertão Central e Cariri, está em torno de 1,0, "o que pode significar manutenção das cadeias de transmissão e consequente continuação da epidemia".
A Região Norte, por exemplo, viu um incremento de casos e de ocupação de leitos desde o fim de maio que levou ao lockdown em Sobral, Camocim, Acaraú e Itarema. O último decreto do Governo do Estado manteve a medida em Sobral por mais sete dias.
Na observação do médico internista e professor universitário Maycon Fellipe da Ponte, o fluxo rodoviário "intenso" entre Fortaleza e Sobral contribuiu para a dispersão da Covid-19 na área. "Estimamos que, hoje, Sobral vive mais ou menos o que Fortaleza vivenciou há duas semanas. Além desse fluxo, também temos muitos pacientes de outros municípios da macrorregião onde as medidas de isolamento não são tão rigorosas", aponta.
Segundo Ponte, mesmo com medidas de isolamento mais rígidas, a transmissão pode repercutir por mais duas semanas. "Nossa percepção é que, há três semanas, tivemos o pico local, quando a procura estava muito alta. Depois, entramos num platô de estabilização e, nessa semana, já observamos os casos reduzindo", indica, ressaltando que, no mesmo período, aumentam o conhecimento sobre a doença e o número de pacientes em recuperação.
Um estudo do Grupo de Investigação de Sistemas Complexos (GISC), do Departamento de Física da Universidade Federal de Viçosa (UFV), explica que, enquanto capitais geralmente passam pelo pico epidêmico mais cedo, "a situação tarda mais a melhorar no interior". Por isso, ressalta a relevância do isolamento social.
"Se diferentes regiões passam pelo surto em momentos diferentes, é possível desafogar o sistema de Saúde desses lugares mais remotos, que podem utilizar-se da estrutura dos municípios que já possuem grande parcela da população imunizada", diz.
Com a segunda melhor rede de atenção à saúde do Estado, na visão da coordenadora do Curso de Medicina da Universidade Federal do Cariri (UFCA), Emille Cordeiro, a região do Cariri apresentou o maior incremento no número de casos confirmados, casos suspeitos e de óbitos, na última semana, de acordo com o boletim da Sesa - 56,8%, 20,4% e 48,8% respectivamente. O Governo do Estado também decretou lockdown em Juazeiro do Norte, que tem mais de 270 mil habitantes. Para a especialista, a dinâmica já era prevista pela epidemiologia.
"Socialmente, temos bairros com bastante aglomeração e uma estrutura de distribuição urbana que, em muitos casos, favorecem a disseminação do vírus, ainda que não haja algo que determine isso especificamente", indica. "No Cariri, demorou um pouco mais para termos um aumento mais proeminente, o que nos deu um tempo para organizar nossos serviços assistenciais", completa, ressaltando a abertura de mais leitos de enfermaria e de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs).
Barreiras
As barreiras sanitárias adotadas por gestões municipais - foram mais de 30, em todo o Estado - em estradas de acesso, rodoviárias e pequenos aeroportos das cidades do Interior também são mencionadas por Emille Cordeiro como estratégias importantes para retardar o avanço da doença num ritmo semelhante a Fortaleza, onde lembra que a Covid-19 começou por bairros nobres e avançou para as regiões periféricas.
O presidente da Associação dos Municípios do Estado do Ceará (Aprece), Nilson Diniz, pondera que não é possível identificar apenas uma rota de transmissão da doença. "Aqui é um conjunto. Pelo nosso monitoramento, temos gente que veio de Recife, de São Paulo, da Paraíba, para o Cariri e para Fortaleza. É um fluxo de todos os lugares, não foi algo isolado. O perigo é quando a pessoa está contaminada, mas viaja sem se sentir doente", afirma.
Diniz considera que o Ceará é pequeno, mas atravessa três momentos diferentes da epidemia: Fortaleza já passa pelo plano de reabertura; o Norte teve aumento nos índices e encara o lockdown, e o Centro-Sul parece ser o próximo epicentro. "O problema é o grande volume de pacientes num tempo curto. Mesmo com leitos de UTI extra, aumenta o número de gente doente. Temos um sistema relativamente frágil, ainda que estejamos em situação menos difícil", avalia o gestor.
A especialista em Saúde Pública e presidente do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde (Cosems), Sayonara Moura, também observa o transporte terrestre como facilitador da interiorização. "Mesmo quem fez barreira sanitária viu chegar pessoas de vários Estados por transporte clandestino", relata.
A representante reforça que a situação da região Norte continua em debate, mas o foco é o espalhamento para o Cariri, especialmente em sítios e distritos mais vulneráveis. "O problema não é nem tanto pela dificuldade de se chegar lá, mas pelo acesso à informação. Além disso, as casas são muito pequenas. Não dá pra isolar uma pessoa numa casa com dois cômodos", explica, defendendo o fortalecimento da atenção primária e o bloqueio precoce de casos.
Mesmo em cidades com declínio da curva epidemiológica e desocupação de leitos, o médico Maycon Fellipe, de Sobral, não descarta novos picos da doença. "O que se espera, baseado no que sabemos, é que cada novo pico não seja tão intenso quanto o primeiro porque já conhecemos a doença, temos mais testes disponíveis e vamos ter estrutura assistencial mais organizada. Além disso, temos medidas que vão ficar na cultura, como a higienização e o distanciamento de pacientes suspeitos". Pondera.
Diário do Nordeste
Por Redação
Miséria.com.br
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