O tempo médio entre a abertura e
o julgamento de processos por estupro e estupro de vulnerável no Ceará é de
1.162 dias, o equivalente a mais de três anos, segundo o Tribunal de Justiça do
Estado (TJCE). Profissionais ligados ao Judiciário e psicóloga apontam os danos
causados às vítimas pela espera.
Em 2020, até outubro, 1.515
processos judiciais por estes crimes foram a julgamento, conforme levantamento
do TJCE solicitado pelo G1. Em paralelo, só até junho, 778 pessoas chegaram aos
registros policiais após serem estupradas no estado, como consta no Anuário
Brasileiro de Segurança Pública.
Dos mais de 1.500 processos
julgados até outubro de 2020, pelo menos 454 (menos de um terço) tiveram como
sentença a condenação do agressor. Em 2018, foram 1.528 processos e apenas 578
réus culpados; e em 2019, 1.836 casos e 592 condenados. O TJCE explicou ao G1,
porém, que os números de condenações podem ser maiores, uma vez que “os filtros
de pesquisa não permitem maior precisão” da informação.
Em resumo, o que se vê é que os
processos não acompanham o ritmo de novos casos: em 2018 e 2019, foram julgados
3.364 processos por estupro e estupro de vulnerável no Ceará. Nos dois anos,
foram registradas 3.762 novas vítimas desses crimes. Em 2020, até outubro,
1.515 casos foram a julgamento; até junho, estatística mais recente disponível,
foram novas 778 vítimas, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Os estupros são um tipo de
violência histórico, atravessado fortemente pela desigualdade de gênero. Por
isso, muitos casos sequer chegam aos registros policiais. Alguns acontecem
dentro de casa, encorpando a violência doméstica.
Ana* (nome fictício), 49, sofre
violência sexual por parte do companheiro há cerca de cinco anos, desde que
decidiu que “não queria mais nada, de forma alguma, e ele nunca se conformou”.
Há um mês, ela resolveu denunciá-lo e solicitar medida protetiva para que ele
saia de casa.
“Ele vinha pra cima de mim à
força, e ele por ser homem já tinha vantagem. Eu não tinha como me livrar
daquela situação. Ameaçava gritar, mas tinha meu filho em casa, eu não queria
expor ele. Eu só chorava, ficava relutando, e ele ficava rindo enquanto fazia.
Ele ria de mim. Quando acabava, eu perguntava se ele estava satisfeito com
aquilo, porque eu estava com vontade de vomitar”, relembra a mulher, que dorme
na sala de casa há dois anos, e acorda diversas vezes com o agressor “puxando o
lençol e se masturbando” ao lado dela.
Machismo
Do total de estupros registrados
no Ceará até junho deste ano, 85% (661) foram praticados contra mulheres. Ano
passado, a diferença era ainda maior: dos 898 registros, 91,2% (819) violaram o
gênero feminino. Nos estupros de vulnerável, o padrão se mantém: em 2020, foram
613 vítimas no primeiro semestre, 515 delas mulheres (84%). Em 2019, das 661
pessoas violentadas em condições de vulnerabilidade, 598 (90%) eram do gênero
feminino.
A promotora de Justiça e
integrante do Núcleo Estadual de Gênero Pró-Mulher (Nuprom) do Ministério
Público do Ceará (MPCE), Roberta Coelho, aponta que, no contexto da violência
doméstica, há processos que se encerram em um mês, e outros que demoram muito
mais. Nesses casos ou quanto a estupros em geral, “o objetivo é correr o mais
rápido possível, para evitar que a mulher seja revitimizada”, como frisa a
promotora. Mas a demora média de 1.162 dias existe: e é extremamente danosa.
“Quando o inquérito policial
começa pela prisão em flagrante, todos os órgãos envolvidos têm prazo menor a
cumprir, é mais célere. Quando há um caso de crime sexual sem prisão em
flagrante, isso demora mais, pela questão das provas. E se a Justiça demorar a
chamar (os envolvidos para audiência), a mulher já tem até superado a situação
e vai ter que passar tudo de novo. Até a percepção dos envolvidos muda, a
leitura do fato muda com o tempo”, lamenta a promotora.
Jeritza Braga, supervisora do
Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem) da Defensoria
Pública do Estado, reconhece que “do ponto de vista jurídico, os processos
muitas vezes demandam tempo até maior”, mas reforça que, nos casos de estupro,
deveria ser “muito mais curto”. “A vítima que está passando por um processo
criminal está sendo revitimizada, desgastada por precisar relembrar a situação,
se expor a atores do direito que muitas vezes são homens”, aponta.
Para a psicóloga Úrsula Góes, que
atua no atendimento de mulheres vítimas de violência que procuram a Defensoria,
o tempo médio de 1.162 dias que é preciso esperar para ver o agressor ser
julgado “é um devastador emocional”.
“Com o machismo estrutural, a
mulher vítima de estupro se sente culpada. Imagine alguém que consegue fazer a
denúncia, ir até o fim, e tem de esperar três anos pra que haja justiça? Ter
que ficar aguardando tempos pra que alguém diga que ela não teve culpa do
abuso? A pessoa tem de se recompor emocional e socialmente, porque a autoestima
diminui, a vida muda”, analisa a psicóloga.
Vergonha, medo, questões de
gênero e a falta de celeridade dos processos são alguns dos fatores que
contribuem para a subnotificação dos casos, como aponta a defensora pública
Jeritza Braga. “Existe um número enorme de subnotificação, porque as vítimas
têm medo de represálias, de se expor, de não dar em nada. Quando ela consegue
que o agressor seja condenado, isso serve de estímulo para outras denunciarem.
O crime de estupro acontecem, geralmente, entre quatro paredes, e a mulher já
pensa como vai provar, quem vai acreditar nela. Mas a palavra da vítima tem um
poder muito forte. As mulheres devem, sim, procurar denunciar. Elas não estão
sozinhas”.
Progresso
A promotora de Justiça Roberta
Coelho destaca que, em meados dos anos 1990, houve uma mudança na legislação
que trata de violência sexual. Na época, ela conta, os crimes sexuais eram
tratados como ações penais privadas, ou seja, só eram colocados adiante se a
vítima quisesse, se contratasse um advogado ou tivesse um defensor público.
Depois, se tornou ação pública
condicionada, sendo iniciada pelo Ministério Público se fosse de vontade da
vítima. Hoje, estupros estão sujeitos a ações incondicionadas: se alguém
denunciar a violência, o processo acontece independentemente da vontade da
vítima. Para a promotora, “isso já foi um grande avanço, para que as vítimas se
sintam encorajadas a denunciar”.
Por Theyse Viana, G1 CE
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