Em um rancho do interior paulista, cinco homens viviam em um alojamento de madeira insalubre junto a baias de cavalos, cheio de fiação elétrica exposta e tinham que descer e subir em uma escada caracol instável, sem guarda-corpo. Um deles caiu e se machucou. Em Pouso Alegre (MG), outros dois homens dormiam num galpão onde eram armazenados agrotóxicos e máquinas agrícolas. Eles não tinham acesso à água potável e o local tinha risco de desabamento. Já no Ceará, uma criança de 11 anos trabalhava cortando carnaúba, uma espécie de palmeira.
Esses são alguns dos casos que os auditores-fiscais do trabalho encontraram em 2022. Ao todo, 2.575 trabalhadores que estavam sendo explorados foram resgatados em 462 fiscalizações pelo país -- um aumento de 31% no número de vítimas em relação a 2021 e de 127% na comparação com 2019, antes da pandemia.
A maioria das vítimas eram homens negros e nordestinos, mas foram encontradas também 35 crianças. Eles estavam sendo explorados principalmente na zona rural, em fazendas de produção de cana-de-açúcar.
O Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo é no próximo sábado, 28 de janeiro. A data foi instituída em homenagem a três auditores fiscais e um motorista que foram assassinados em 28 de janeiro de 2004 a caminho de uma inspeção em fazendas da região de Unaí (MG). O episódio ficou conhecido como Chacina de Unaí.
Os dados foram divulgados pelo Ministério do Trabalho e Emprego nesta terça-feira (24) e apenas em três estados não foram constatados casos de escravidão contemporânea em 2022: Alagoas, Amazonas e Amapá. Já o estado com mais casos segue sendo Minas Gerais, com 1.070 trabalhadores resgatados. Desde 2013, os mineiros lideram o ranking.
Diferentemente de 2019, 2020 e 2021, onde os maiores resgates de trabalhadores em um único estabelecimento ocorreram no entorno do Distrito Federal, o maior resgate do ano passado foi em Varjão de Minas (MG), onde 273 trabalhadores foram encontrados em condições degradantes numa fazenda de cana-de-açúcar.
No ranking dos estados, aparecem em seguida Goiás e Piauí --no primeiro foram resgatados 271 trabalhadores e no segundo, 180. Logo depois estão Rio Grande do Sul e São Paulo, que tiveram 156 e 146 trabalhadores resgatados, respectivamente.
Homens negros nordestinos
A esmagadora maioria das pessoas resgatadas da escravidão contemporânea em 2022 eram homens (92%). Quase um terço tinha entre 30 e 39 anos, metade residia no Nordeste e 58% eram nascidos no Nordeste. A maioria das vítimas também era autodeclaradas preto ou pardo (83%), só 15% eram brancos e 2% indígenas.
Quanto ao grau de instrução, 23% declararam ter estudado até o 5º ano incompleto, 20% haviam cursado do 6º ao 9º ano incompletos. Do total, 7% dos trabalhadores eram analfabetos.
Também foram resgatados 148 migrantes de outros países (o dobro em relação a 2021) --sendo 101 paraguaios, 14 venezuelanos, 25 bolivianos, 4 haitianos e 4 argentinos.
A Lei de Migração prevê a autorização de residência de vítima de tráfico de pessoas, de trabalho escravo ou de violação de direito agravada por sua condição migratória. Nesses casos, o requerimento é encaminhado ao Ministério da Justiça pela equipe de inspeção e o migrante pode continuar no país.
Crianças
Também foram resgatadas no ano passado 35 crianças e adolescentes submetidas a trabalho análogo ao de escravo. Esse número representa uma queda de quase metade do número registrado em 2021. Desse total, 10 eram menores de 16 anos e 25 tinham entre 16 e 18 anos no momento do resgate.
O cultivo de café foi a atividade em que mais crianças e adolescentes foram resgatadas --24% das vítimas. Mas também havia crianças sendo exploradas em atividades esportivas, produção florestal, atividades de apoio à agricultura, cultivo de arroz, cultivo de coco-da-baía, criação de bovinos, fabricação de produtos de madeira, produção de carvão vegetal, cultivo de soja e confecção de roupas.
Zona rural e cana-de-açúcar
As atividades econômicas onde mais houve exploração de mão-de-obra, considerando o número de resgatados, foram o cultivo de cana-de-açúcar (362) atividades de apoio à agricultura (273), a produção de carvão vegetal (212), o cultivo de alho (171), o cultivo de café (168), o cultivo de maçã (126), a extração e britamento de pedras (115), a criação de bovinos (110), o cultivo de soja (108), a extração de madeira (102) e a construção civil (68).
Assim como nos últimos anos, em 2022 as ocorrências de trabalho escravo foram principalmente na zona rural (73% do total de ações e 87% dos trabalhadores encontrados).
No caso do trabalho escravo urbano, a maioria das pessoas atuava na construção civil (68), em restaurantes (63) e na confecção de roupas (39).
Um grande aumento de casos de trabalho escravo doméstico vem sendo registrado desde 2021, quando 31 vítimas foram resgatadas. Em 2022, foram 30 vítimas de trabalho escravo doméstico resgatadas em 15 estados. Na Bahia estava o maior número: 10 vítimas. Em seguida aparece a Paraíba, Minas Gerais, São Paulo e Pernambuco, com 3 casos cada.
Milhares resgatados
Desde 1995, quando foi iniciada a política pública de combate ao trabalho escravo, mais de 60 mil trabalhadores foram resgatados no país e mais de R$ 127 milhões de reais recebidos a título de verbas salariais e rescisórias durante as operações.
Para o chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE) do Ministério do Trabalho e Emprego, o auditor-fiscal do trabalho Maurício Krepsky, o resgate não acaba quando o trabalhador é retirado do local de exploração.
“O resgate tem por finalidade fazer cessar a violação de direitos, reparar os danos causados no âmbito da relação de trabalho e promover o devido encaminhamento das vítimas para serem acolhidas pela assistência social”, afirma.
Em 2022, os trabalhadores receberam mais de R$ 8 milhões em verbas salariais e rescisórias. Também foi promovida a formalização de 1.122 contratos de trabalho após a notificação dos auditores-fiscais do trabalho durante as operações.
Denúncias de trabalho análogo ao de escravo podem ser feitas de forma anônima no Sistema Ipê, no site. Em 2022 o Sistema Ipê recebeu 1.654 denúncias --um aumento de 66% em relação ao ano anterior.
Por Thaiza Pauluze, GloboNews
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