A empresária Iracema Correia São Tiago, que apresentou
documentos e foi reconhecida pelo estado do Ceará como proprietária de cerca de
83% das terras da Vila de Jericoacoara, está no centro da disputa sobre o
destino de áreas não ocupadas em um dos locais turísticos mais conhecidos do
Nordeste.
Caso seja implementado o acordo extrajudicial que vem sendo
conduzido pela Procuradoria-Geral do Estado do Ceará (PGE-CE), a empresária
receberá o título de terras da Vila que não estão ocupadas, com exceção de vias
de acesso e áreas consideradas de interesse do estado. A área que seria
destinada a Iracema São Tiago após a negociação é de cerca 4,9 hectares, ou 49
mil m².
O nome da empresária veio a público depois que moradores da
Vila passaram a protestar contra o acordo, no início de outubro, alegando que
áreas livres da região seriam prejudicadas. Em julho de 2023, Iracema
apresentou escritura pública que aponta a compra de terrenos na região na
década de 1980.
Após análise dos documentos, Iracema foi reconhecida pelo
estado como proprietária de um terreno particular que possui 73,5 hectares
dentro da Vila de Jericoacoara. No total, a Vila tem 88,2 hectares. O terreno
também tem áreas que se sobrepõem ao Parque Nacional de Jericoacoara.
Iracema atualmente tem 78 anos e mora em Fortaleza. Natural
do Rio de Janeiro, ela passou a morar no Ceará quando o pai dela, que era
funcionário do Banco do Brasil, se transferiu para o estado. Desde então,
Iracema residiu principalmente em Fortaleza.
Ela foi casada por 25 anos com José Maria de Morais Machado,
com quem teve quatro filhos. José Maria foi quem adquiriu os terrenos, há mais
de 40 anos.
Ao se divorciarem, em 1995, ela ficou com alguns dos
terrenos do ex-marido, localizados em Fortaleza e em Jericoacoara. Dentre estas
áreas, está a fazenda Junco I, que é objeto do acordo extrajudicial em
andamento.
O g1 conversou com Samuel Machado, empresário e sobrinho de
José Maria Machado, ex-marido de Iracema. Ele foi o escolhido para dar
entrevistas em nome de Iracema e da família. José Maria, tio de Samuel, morreu
em 2008.
Conforme o familiar, Iracema é uma pessoa reservada, de
hábitos reclusos, e que se dedicou às atividades domésticas e à criação dos
filhos. Ele explica que ela ficou abalada e mais reclusa com a repercussão do
caso nas últimas semanas.
“Ela está abalada porque estão fazendo essa confusão toda, e
ela não mexeu com ninguém. Ela não pediu nada de ninguém. Isso tá deixando ela
ainda mais assim... ‘não quero ver ninguém’. A gente tem que respeitar pela
idade”, declarou Samuel Machado.
À época em que se casaram, era o esposo que se dedicava às
atividades nos imóveis, que se concentravam principalmente em áreas mais
afastadas da faixa de praia e das dunas. Enquanto o marido costumava viajar
bastante a trabalho, Iracema cuidava mais dos filhos.
Iracema não costuma participar das reuniões do acordo
extrajudicial sobre as terras da Vila. No entanto, segundo família e advogados,
ela acompanha de perto a situação e faz questão de orientar para que moradores
e empreendedores do local não sejam impactados.
O que o acordo conduzido pela PGE-CE sobre as terras da Vila
propõe que:
Iracema renuncie a todas as terras que, mesmo estando dentro
de sua propriedade, estejam ocupadas com moradores ou quaisquer tipos de
construções;
somente terrenos que ainda estavam no nome do Instituto do
Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace) e que não estavam ocupados de alguma
forma passem à empresária;
e todas as vias e acessos locais da Vila de Jericoacoara
sejam preservados.
Compras de terras há mais de 40 anos
Conforme Samuel Machado, o ex-marido de Iracema começou a
comprar terras na região, que antigamente pertencia ao município de Acaraú, a
partir de 1979 para o plantio de caju e de coco.
Também chamado de Zé Maria, ele vinha de uma família da
cidade de Sobral, no interior do Ceará, que trabalhava com a fabricação da cera
de carnaúba (planta nativa do Brasil) e produtos de couro.
Ao se estabelecer em terras do litoral, José teria levado
pessoas de Sobral para trabalhar no cultivo do caju e do coco. Com fotos do ano
de 1982, a família mostra a interação de José Maria com pessoas da região
quando já tinha imóveis na área e planejava adquirir mais terrenos.
Samuel explica que o tio não costumava levar a família para
a região devido à pouca infraestrutura naquele período. Desta forma, ele
explica que Iracema frequentava pouco as terras nos anos iniciais, enquanto
esteve casada.
“Na fazenda, o que ele [José Maria] fazia era trabalho. E
todo mundo na região sabia quem era Zé Maria e sabia quem era a ‘Firma
Machado’, mas a Iracema não (era conhecida na região). E também no divórcio, a
tia Iracema tinha ‘Machado’ no nome e voltou para o nome de solteira. Se ela
continuasse como Iracema Machado, era uma coisa que você poderia remeter”,
afirmou Samuel.
Segundo os documentos apresentados, José Maria de Morais
adquiriu três terrenos na região (totalizando 714,2 hectares) em 1983, que
foram unificados e deram origem à fazenda Junco I. O valor total pago pelos
três imóveis, que depois viraram a Fazenda Junco I, foi de 620 mil cruzeiros.
Após unificação de matrículas dos terrenos e levantamento
topográfico em 2007, a Junco I passou a ter um total de 924,4 hectares.
Anderson Parente, um dos advogados da família, explica que estas diferenças são
comuns quando há imóveis comprados no passado, quando havia diferentes formas
de medição.
Nas escrituras de 1983, a delimitação dos terrenos era
descrita em léguas, braças ou por meio de marcos físicos do território, como
“terrenos de Marinha” e “travessão das Pedrinhas” (córrego da região).
O levantamento topográfico feito após mais de 20 anos
contava com uma maior precisão para determinar os limites do imóvel, como os
recursos de georreferenciamento.
De acordo com o advogado, estas características são comuns
em terrenos da época. Ele ressalta que a validade dos documentos foi
reconhecida por diversos órgãos nos últimos anos, como o Instituto Chico Mendes
de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Após o divórcio, em 1995, Iracema passou a administrar as
terras que ficaram com ela. Foi quando José Maria deixou de ir à região,
segundo a família. A gestão das fazendas, contudo, não teria sido um foco para
a nova proprietária.
A Fazenda Junco I, agora com um total de 924,4 hectares, se
estende na porção Norte do município de Jijoca de Jericoacoara, com áreas que
se sobrepõem ao Parque Nacional de Jericoacoara e à Vila de Jericoacoara.
Iracema tem outra fazenda na mesma região, a Junco II. Elas
estão fora da Vila de Jericoacoara, mas ficam dentro do parque nacional.
Outros dois terrenos no interior do parque formam uma só
fazenda, chamada de Caiçara, que pertence a uma empresa privada. Essa empresa
também é administrada por Iracema. Conforme familiares, Caiçara foi a primeira
na região a ser comprada pelo ex-marido dela.
Iracema também possui imóveis de aluguel em Fortaleza. E
possui empresas de gestão de aluguel de imóveis próprios. A quantidade de
empresas não foi confirmada pela família.
Iracema teria ficado abalada após a separação e voltou a se
concentrar na área com a ajuda de filhos e sobrinhos a partir dos anos 2000.
Eles teriam descoberto, apenas em 2002, que parte da fazenda Junco I havia sido
arrecadada para se tornar a Vila de Jericoacoara.
Segundo Samuel Machado, isso aconteceu quando o Parque
Nacional de Jericoacoara foi delimitado e criado. Em 2002, a área de
preservação ambiental com mais de 8 mil hectares foi inserida no território dos
municípios de Jijoca de Jericoacoara, Cruz e Camocim.
O processo de arrecadação da Vila aconteceu entre os anos de
1995 e 1997. As terras foram incorporadas ao patrimônio público, uma vez que
não havia sido localizado um proprietário com escritura pública.
“Ela [Iracema] não ficou sabendo porque eles [governo
estadual] não publicizaram. Em momento algum, foi chegada essa informação a ela
ou à família ou ao meu tio, porque todo mundo conhecia ele… A ninguém. Ninguém
soube disso. Foi uma surpresa em 2002”, declarou Samuel.
À época, ele se envolveu na questão juntamente com os primos
para entender quais eram as terras no nome de Iracema e o que fazer depois que
o Parque foi criado.
A família relata que, ao descobrir a situação da arrecadação
da Vila de Jericoacoara, o entendimento dos advogados à época era que eles não
poderiam reivindicar nada depois de cinco anos da regularização fundiária.
“Passamos de 2002 pra frente a procurar outras respostas até
o dia em que chegamos a esse escritório [de advocacia]”, disse Samuel.
“Esse assunto ficou encerrado, eles se conformaram na época
e disseram ‘olha, está perdido’. Não tem mais o que se fazer”, complementou o
advogado Anderson Parente.
A família também considerava que a Vila não era tão valiosa.
Além de se interessarem mais pela área onde houve plantações de caju e coco, na
outra extremidade da fazenda Junco I, as áreas do litoral não eram ainda uma
região tão visada pelo turismo no início dos anos 2000.
Desde então, os familiares buscam soluções para as áreas de
Iracema que ainda tem dentro do Parque Nacional: partes da fazenda Junco I, a
fazenda Junco II e a fazenda Caiçara.
Três processos judiciais seguem tramitando sobre estas
terras. Neles, a família solicita indenizações por desapropriação indireta. A
argumentação é que a criação do Parque tirou da proprietária a possibilidade de
explorar economicamente as terras.
Com a nova equipe jurídica, veio a compreensão de que seria
possível também reivindicar áreas da Vila. Isso com base na ressalva que o
estado estabeleceu para propriedades com documentos válidos em data anterior à
arrecadação.
Assim, foi feito o primeiro requerimento em 2023, que levou
ao acordo extrajudicial em andamento para transferência das áreas da Vila que
não estão ocupadas.
O governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT), e o prefeito
eleito para a próxima gestão em Jijoca de Jericoacoara, Leandro Cezar (PP), se
manifestaram no início desta semana em lados opostos sobre o acordo.
Elmano defendeu o dever do estado em reconhecer a
propriedade de Iracema sobre as terras reivindicadas, afirmando que confia na
análise realizada pela PGE-CE. O gestor se pronunciou sobre o caso em
entrevista ao programa O POVO News, na segunda-feira (21).
Citando o processo de regularização fundiária das áreas da
Vila de Jericoacoara, o governador apontou que a legislação previa o
reconhecimento do título de propriedade de imóveis registrados em período
anterior.
“A PGE passou meses investigando em cartório a origem dessa
escritura. Eu tenho absoluta confiança no meu procurador-geral do estado e nos
procuradores do estado. A conclusão a que eles chegaram é que a escritura é
válida”, declarou o governador.
Elmano afirmou que haveria um enorme grau de conflito se não
houvesse acordo sobre as áreas onde já houve ocupação e benfeitorias na Vila.
Uma das dificuldades seria indenizar todas as pessoas envolvidas.
O governador comentou, também, que o acordo começou em 2023
por ter sido este o momento em que a empresária apresentou os documentos sobre
o imóvel. E que a escritura não perde a validade com o tempo.
Elmano complementou que, dentre as áreas não ocupadas e
reivindicadas agora, há terrenos de interesse público do governo estadual, como
áreas para o estacionamento de turistas e uma Estação Científica da
Universidade Federal do Ceará (UFC).
“Qual é a situação? Aquilo que interessava ao estado, nós
negociamos para ficar com o estado. Aquilo que era particular, reconhecer que é
do particular. Eu não posso é confiscar a propriedade de alguém que tem a
escritura, que a escritura é válida, que ninguém tá lá vivendo como dono. A
dona é a pessoa, eu não posso chegar lá e dizer ‘não é sua não, porque você não
apareceu, você só trouxe o documento agora’. Porque não é assim que a
Constituição diz”, declarou o governador.
Elmano complementou que não haveria acordo se fosse
comprovado que a documentação não é válida.
Prefeito eleito de Jericoacoara se manifesta contra acordo
sobre terras da Vila
Na terça-feira (22), o prefeito eleito para gerir Jijoca de
Jericoacoara a partir de 2025, Leandro Cezar (PP), divulgou nas redes sociais
um vídeo em reação às afirmações do governador.
“Eu, como prefeito eleito desse município, venho aqui deixar
bem claro que sou totalmente contra essa doação”, afirmou Leandro Cezar.
O futuro gestor afirmou que, caso o acordo não seja
revertido, não irá conceder alvarás de construção para estabelecimentos que
pudessem ser feitos futuramente nas áreas em litígio.
“Vamos fazer a nossa defesa e buscar todos os mecanismos pra
garantir que Jijoca de Jericoacoara, que a Vila de Jericoacoara tenha seu
patrimônio natural preservado, que são suas áreas verdes,” declarou o gestor.
Leandro anunciou que irá dialogar com a PGE-CE, juntamente
com o Conselho Comunitário de Jericoacoara, que também é contrário ao acordo. E
que buscará uma audiência com o governador do Ceará na próxima semana.
“Quero deixar aqui também bem claro que o meu compromisso é
defender Jericoacoara, não vou defender terceiros”, afirmou o prefeito eleito.
‘Não somos grileiros’, diz carta da família
Em carta assinada por Iracema Correia e os filhos, a família
se pronunciou publicamente nesta quinta-feira (23) para tentar tranquilizar os
moradores da Vila de Jericoacoara. Confira na íntegra:
"Carta aberta aos moradores da Vila de Jericoacoara
Gostaríamos de tranquilizar os moradores, comerciantes,
empresários e trabalhadores da Vila de Jericoacoara. Nos últimos dias, muitas
informações distorcidas foram trazidas a público e pedimos a oportunidade de
esclarecer os fatos e fazer com que a verdade prevaleça.
Nossa família nunca pediu ao Idace a totalidade das terras
da fazenda Junco I, que se sobrepõe à Vila de Jericoacoara. Desde que
entendemos que tínhamos o direito de questionar a Arrecadação feita pelo
Governo do Ceará, nossa condição para fazer isso era a de respeitar os terrenos
legitimamente ocupados e titulados.
Nunca se falou em tomar casas ou construções de quem quer
que fosse.
A nossa reivindicação é para que nos seja dada a
titularidade dos terrenos que não estão ocupados e que não sejam do interesse
do Governo do Estado. E asseguramos que qualquer uso desses terrenos no futuro
ocorrerá respeitando o Plano Diretor do Município. Não existe a possibilidade
de causarmos qualquer transtorno para a coletividade.
Queremos participar do desenvolvimento de Jeri, como tantas
outras pessoas que estão aí, muitos de outros estados e do estrangeiro. Por que
eles podem e nós, cearenses, não podemos? Queremos nos somar e não dividir.
Queremos dialogar e não agredir.
Estamos sendo vítimas de uma campanha de difamação. Não
somos grileiros. Nossa família investe no desenvolvimento da região há muitos
anos e tudo isso começou com o José Maria Machado (Zé Maria), da Firma Machado,
que é de Sobral e chegou na região em 1979. A legitimidade da nossa
documentação foi aferida e comprovada pelos órgãos competentes em níveis
estadual e federal. Além do reconhecimento pelo Idace, ICMBio e SPU, a
propriedade é certificada pelo Incra e georreferenciada. A alteração na
metragem da área dos terrenos tem relação com o avanço da tecnologia e o
aumento da precisão da medição. E os pontos de referência não mudaram: ao Norte
com o Litoral/Terra de Marinha e ao Sul com o Córrego da Forquilha, no
Travessão das Pedrinhas.
Já nos colocamos à disposição do Conselho Comunitário, do
atual prefeito e do prefeito eleito para conversar e esclarecer quaisquer
dúvidas, mas não obtivemos nenhum retorno. Seguimos à disposição para o
diálogo.
Pedimos ao povo de Jeri que não se deixe influenciar pela má
fé de uma ou outra pessoa que queira, de fato, se apossar desses terrenos -
como já fizeram anteriormente. São essas pessoas que estão desenvolvendo uma
campanha para aterrorizar o jijoquense e nos difamar. Isso nós não podemos
permitir.
Queremos paz e diálogo com quem ama a Vila de Jericoacoara
de verdade.
Iracema Correia São Tiago e filhos
23/10/24"
Por G1 CE.
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