Um novo laudo técnico adicionou mais um impasse sobre o
futuro da Vila de Jericoacoara, no Litoral Oeste do Ceará, um dos destinos
turísticos mais visitados do Brasil. O documento aponta alterações em registros
cartográficos que aumentaram sucessivamente o tamanho do terreno da empresária
que alega ser dona de 80% do território da Vila. Porém, a comunidade local
defende que essa propriedade fica fora do Parque Nacional e nunca alcançou a
área em disputa.
O laudo, concluído no último dia 3 de novembro, foi
contratado pelo Conselho Comunitário de Jericoacoara e é assinado pelo
engenheiro cartógrafo Paulo Roberto Lopes Thiers, doutor em Geografia e
professor da Universidade Federal do Ceará (UFC). Em vários trechos do
documento, ele descreve que, “inexplicavelmente”, houve um acréscimo de 109% na
área das matrículas dos terrenos pertencentes a Iracema Correia São Tiago.
O estudo foi realizado após supostas irregularidades
fundiárias denunciadas pela entidade formada por moradores. Segundo o
engenheiro, três terrenos da empresária tiveram matrículas unificadas em 2007.
Nesse processo, houve alteração da área total somada de 441,07 hectares para o
valor final de 924,49 hectares - área que alcançaria a Vila.
“Não há nenhuma justificativa de caráter técnico e nem
jurídica às claras que justifiquem esse acréscimo percentual de 109%. De onde?
Por quê? Pra quê? Evidentemente que não foram identificadas documentações, a
bem da verdade, que justificassem o acréscimo de 483,42 ha na área total”
descreve Paulo Roberto Lopes Thiers
Doutor em Geografia e professor da Universidade Federal do
Ceará (UFC), no laudo
A Procuradoria-Geral do Estado do Ceará (PGE-CE), envolvida
em processo extrajudicial com Iracema São Tiago, informou que ainda não teve
acesso ao documento. No início deste mês, o órgão suspendeu o acordo por tempo
indeterminado, dias após uma recomendação do Ministério Público do Ceará
(MPCE).
“A PGE-CE aguarda ainda manifestação do Conselho Comunitário
sobre a matéria”, completou em nota ao Diário do Nordeste.
Lucimar Marques, presidente do Conselho Comunitário de
Jericoacoara, afirmou à reportagem que de fato ainda não apresentou a análise à
PGE, mas ele faz parte do processo de documentação que integra a manifestação
solicitada aos moradores.
“A gente tem parceria com a comunidade, que está empenhada e
contribuindo para que a gente possa fazer as coisas com eficácia. Contratando
pessoas, o que não é barato, mas a gente está de mãos dadas e a comunidade está
abraçando essa causa de todas as formas”, disse.
Sobre o conteúdo da análise cartográfica, Lucimar entende
que ele demonstra uma “controvérsia” nos registros oficiais. “Na época de 1980,
não tinha a modernidade de equipamentos que nós temos hoje. Isso é pra gente
mostrar que realmente existe algo de errado nas medições do jeito que foram
feitas na década de 1980. A gente quer mostrar que a realidade é outra”,
explica.
Com o acordo suspenso, a PGE-CE também solicitou uma perícia
cartorária no registro do imóvel ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra), com apoio do Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará
(Idace).
O QUE DIZ O NOVO LAUDO
O grupo de moradores alega que a área inicial – de mais de
440 hectares – corresponde à Fazenda de Plantio de Caju, Junco 1. Segundo eles,
com a mudança de cartório de Acaraú para Jijoca, em 2007, os três lotes de
terra que formam a propriedade passaram por uma nova averbação, mais do que
dobrando o tamanho do terreno. Assim, os registros alcançaram a Vila de
Jericoacoara.
“Onde se encontram a(s) matrícula(s) da área complementar
equivalente a 483,45ha (quatrocentos e oitenta e três hectares e quarenta e
cinco centiares), aproximadamente?”, questiona o engenheiro cartógrafo.
Segundo o laudo do especialista, as análises iniciais das
matrículas evidenciaram situações que são “inusitadas” com relação às
respectivas áreas e consequentes somatórios dessas áreas, que “grita por
análise de Cadeias Dominiais, para esclarecimentos”. Esse tipo de estudo
registra a sequência cronológica de todas as transmissões de propriedade de um
imóvel, desde o atual proprietário até a origem da titularidade.
EMPRESÁRIA DEFENDE ATUALIZAÇÃO
Em resposta ao Diário do Nordeste nesta quinta-feira (7), a
defesa de Iracema Lima alegou, por meio de resposta encaminhada via assessoria
de comunicação AD2M, que ainda não teve acesso ao laudo técnico. No entanto, os
advogados da empresária defendem que a alteração no tamanho da Fazenda Junco I
se deu pela mudança do Cartório de Acaraú para Jijoca e pela atualização da
forma de medição.
“Até então, esses imóveis eram medidos em braças ou léguas,
medidas essas que são inexatas e que podem variar, inclusive entre uma região e
outra do País. Com o georreferenciamento obrigatório, a propriedade passou a
ter a medida mais exata”, alega a defesa.
Os advogados defendem, ainda, que existem marcos físicos
geográficos na documentação relativa à área, desde o ano de 1941, a partir do
Cartório de Acaraú:
Matrícula 827 (15/06/82) - “Limitando-se, ao Norte, com o
Litoral, e ao Sul, com as terras do Córrego da Forquilha, no Travessão das
Pedrinhas”.
Matrícula 884 (26/01/83) -
“Compreendido nos seguintes limites: Ao Norte, com terra de Marinha, ao
Sul, com terras do Córrego da Forquilha (Santo Elizeu)”.
Matrícula 885 (26/01/83) -
“Limitando-se ao Norte, com terra de Marinha, e ao Sul, com as terras do
Córrego da Forquilha, no Travessão das Pedrinhas”.
As matrículas 827, 884 e 885 estavam registradas na comarca
de Acaraú, segundo um parecer da PGE-CE. Por questões de mudança de comarca,
passando para a de Jijoca de Jericoacoara, elas foram novamente documentadas
sob os números 542, 543 e 545, respectivamente.
A defesa também indica que em um documento do Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), datado de 1998/1999, os
imóveis possuem 714,90 hectares. Além disso, a retificação de 2007 teria
corrigido a área, respeitando todas as normas legais, de modo que não houve
nenhuma invasão ou manifestação contrária desde a data da aquisição em 1983.
“Nesse caso, há retificação das medidas do imóvel de 714,20
hectares para 924,90, significando num ajuste de 210,70 hectares, isto é, um
“acréscimo” de 29%, que, diga-se de passagem, em nada interfere na sobreposição
sobre a Vila de Jericoacoara”, finaliza a nota.
ENTENDA O IMPASSE SOBRE A VILA DE JERICOACOARA
No início de outubro, o Conselho foi informado sobre uma
negociação entre a PGE e o Idace com o intuito de transferir algumas terras da
Vila de Jericoacoara para um ente particular. Só no dia 14 do mesmo mês, teve
acesso ao Processo Administrativo que trata do acordo.
Com as informações, os nativos defendem que a família que se
diz “dona de Jericoacoara” é proprietária, na verdade, de uma fazenda de caju
situada numa região conhecida como “Firma Machado”, entre as localidades de
Córrego da Forquilha e Lagoa Grande. Segundo eles, a família “esticou o tamanho
da propriedade através da averbação de uma nova topografia no Cartório”.
Conforme o laudo do professor Paulo Roberto Lopes Thiers,
houve uma sobreposição das terras particulares devido a falhas históricas nos
registros de terra, sobretudo quanto à precisão e à validade das medições pelo
uso de um sistema de referência “inadequado”. Isso teria provocado “uma grande
diferença” nas medições.
Originalmente, a família de Iracema detinha as matrículas
542, 543 e 544 junto ao Cartório de Registro de Imóveis de Acaraú, assim
descritas:
Matrícula 542: originalmente, teria 159,77 hectares, mas uma
averbação anotou uma matrícula de 220,47 hectares;
Matrícula 543: teria área original de 106,78 hectares;
Matrícula 544: a medição cartorária resultou em área de
113,79 hectares, valor 34,79 hectares acima do valor original.
Assim, somadas, essas terras teriam inicialmente 441,04
hectares. Porém, teriam crescido de tamanho em 109%, após uma série de
averbações (ato de registrar algo em cartório) ocorridas desde a década de
1980.
Desse modo, surgiu a matrícula nº 545, datada de dezembro de
2007, cujo registro inicial é no Cartório de Registro de Imóveis do Município
de Jijoca de Jericoacoara e que indica a unificação das matrículas 542, 543 e
544 – mas perfazendo um total de 924,49
hectares.
Por Diário do Nordeste.
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